Tudo ainda é muito novo, mas, em 2023, conseguimos ter um vislumbre do impacto que a Inteligência Artificial (IA) generativa é capaz de causar na sociedade. Da nova campanha da Netflix em Buenos Aires para divulgar a última temporada da série Sex Education, ao controverso comercial da Volkswagen, que “ressuscitou” a imagem de Elis Regina, criando a ilusão de que ela dirigia ao lado da filha, Maria Rita, qualquer situação tornou-se possível, por mais surreal que pareça. Mas, e agora? Qual seria o limite do uso de AI na criação de conteúdo original?
Essa é uma pergunta pertinente não apenas ao universo do marketing e da publicidade, mas também ao setor cultural e de comunicação como um todo. Até porque já há inúmeras imagens criadas por IA justamente para gerar desinformação.
É o caso da trend que inundou as redes na última semana: fotos de bichinhos que, na verdade, escondem mensagens cifradas.
“Olha que gatinhos fofos!”, diziam algumas das legendas, ignorando os erros de imagem, que mostram animais sem algumas patas e com olhos desalinhados. Mas a brincadeira, nesse caso, não era apenas compartilhar gatos falsos. Ao semicerrar os olhos e se afastar um pouco da tela, nota-se que os bichinhos formam as palavras “gay sex” (sexo gay, em português).
Bastou para que a web fosse invadida por outras imagens aparentemente inofensivas, mas que ocultavam mensagens de cunho sexual. Será que, se a palavra formada fosse “straight sex” (sexo heterossexual), a polêmica seria tão grande? Bem, o fato é que, nessa onda, sobrou até para o cantor Jão, associado recentemente nas redes a um termo pejorativo.
A rebote desse hit viral de bichinhos fofos, o X (ex-Twitter) tem nos brindado com outras trends que colocam celebridades em situações inusitadas – e as assessorias de imprensa dos famosos que lutem para desmentir o que fato e o que é boato de AI generativa.
Como o vídeo do jogador Gerard Piqué pedindo desculpas a Shakira pela traição que está viralizando na web – mas, infelizmente, foi feito por inteligência artificial.
Outro exemplo é o da cantora Lauren Jauregui (ex Fifth Harmony), que acaba de tuitar: “Parem de usar minha imagem para criar fotos de AI sem meu consentimento. Obrigada!”. Isso porque os fãs alimentam um antigo rumor de que Lauren teria um romance com Camila Cabello, outra ex-integrante da girl band, e nos últimos dias, têm criado diversas imagens fake com as duas juntas.
Roteiristas vs IA
A reivindicação por regras mais transparentes e justas em relação à IA generativa foi um dos pontos que mais dificultou a resolução da greve dos roteiristas e atores de Hollywood. Diversos acordos entre profissionais, estúdios e streamings foram prejudicados por falta de entendimento sobre o uso da tecnologia.
Enfim, depois de 148 dias e um prejuízo estimado em mais de US$ 3 bilhões, a greve do Sindicato dos Roteiristas dos EUA (WGA) chegou ao fim, em 24 de setembro, com possível vitória dos profissionais sobre o tema da IA – possível, porque os 11.500 roteiristas associados ainda precisam votar para ratificar os termos firmados, até o dia 9 de outubro.
No acordo provisório negociado com os estúdios de TV e cinema, não será permitido que a IA generativa escreva ou reescreva material literário ou que seja tratado com material de origem. Ficou estabelecido que os estúdios não podem exigir que roteiristas usem software de IA (como Chat GPT) em seus trabalhos.
Porém, caso roteiristas optem por fazer uso dessas ferramentas, a empresa precisa antes consentir e é preciso seguir as políticas aplicáveis da companhia. Os estúdios também devem divulgar a roteiristas se algum material fornecido por eles foi gerado por IA, ou incorporar material gerado pela ferramenta. A exploração de materiais criados por escritores para treinar IA também está proibida.
Temos regulamentação?
Por ora, aqui contamos apenas com o suposto bom senso das pessoas envolvidas nas criações – o que torna tudo muito subjetivo e passível de erros e polêmicas.
Após questionamento e críticas sobre suposta falta de ética ao trazer uma pessoa falecida de volta à vida por meio da tecnologia num anúncio de marca, a campanha da Volkswagen com Elis foi parar no Conselho Nacional Autorregulamentação Publicitária (Conar), mas foi absolvida, com a avaliação unânime do colegiado de que não existia infração ao código de ética, considerando “as recomendações de boas práticas existentes acerca da matéria, bem como a ausência de regulamentação específica em vigor”.
Na ação da Netflix, por exemplo, houve elogios à jogada de marketing, lembrando que, em 2005, o Obelisco argentino já usou um preservativo rosa, numa campanha da Secretaria de Saúde de Buenos Aires, para conscientização no Dia Internacional contra o HIV. Mas também houve nas redes críticas à propaganda por banalizar e “lacrar” às custas do mais importante monumento argentino. Se tivesse, por exemplo, ocorrido no Obelisco do Ibirapuera, em São Paulo, local que serve de mausoléu a combatentes da Revolução de 32, a ação também poderia ter sido considerada de muito mau gosto.
Feita pela empresa de efeitos especiais Vertex CGI, a pedido da Netflix, a campanha para divulgar a última temporada de Sex Education cobriu virtualmente o Obelisco de Buenos Aires com uma camisinha cor-de-rosa
Outra recente controvérsia ocorreu na semana passada, depois que a marca de moda BÔ.BÔ postou um vídeo gerado por IA, para promover a abertura de uma nova unidade em São Paulo. A imagem simula uma serpente gigante entrando na loja, mas a ideia desagradou clientes, que relataram perturbação e outras sensações ruins. “Não passo mais nem de carro na frente da loja. Ficarei em pânico só de lembrar”, diz um dos inúmeros comentários negativos do post.
Orientações ao mercado
Pensando na autorregulação do setor, a Associação Brasileira de Anunciantes (ABA) lançou, em agosto, um guia sobre os impactos e pontos de atenção da presença da inteligência artificial generativa na publicidade.
Criado em parceria com o escritório de advocacia Opice Blum, Bruno Advogados, a obra mostra um panorama das aplicações práticas, jurídicas e éticas da IA Generativa e destaca o “potencial de criar experiências publicitárias imersivas e interativas que pretendem cativar os consumidores em níveis mais profundos”.
Uma das orientações é justamente não assumir que as pessoas agirão com “bom senso” ou que anteciparão o que a empresa espera delas ao utilizarem a IA Generativa nas suas funções. Em vez disso, a recomendação da ABA é identificar as áreas de negócio da empresa que poderão contar com os impactos positivos da IA Generativa e desenvolver políticas de governança internas sobre como essa tecnologia poderá ser utilizada pelas pessoas colaboradoras.
Entre as sugestões presentes no documento estão ainda:
- Revisar o trabalho produzido pela IA Generativa, confirmando ou contestando as informações e fatos gerados no conteúdo, dado o risco significativo de informações imprecisas, falsas e enviesadas. Apenas a revisão humana pode checar se o conteúdo é verdadeiro, precisos e ético;
- Investir na capacitação e qualificação da equipe para usar essas tecnologias de modo adequado e seguro, entendendo os riscos dessas ferramentas;
- Incorporar intencionalmente preceitos éticos e normas morais nos comandos (prompts) inseridos nos sistemas de IA Generativa, para mitigar os riscos de vieses e discriminação, por exemplo em relação à raça ou etnia, religião, condição socioeconômica, diversidade etc.
- Estabelecer abertamente, junto às pessoas colaboradoras da empresa, quais dados e informações poderão ser inseridos em sistemas de IA Generativa. Isso porque é preciso cuidar das informações confidenciais ou protegidas pela empresa, seja pela Lei Geral de Proteção de Dados (que protege dados pessoais de pessoas colaboradoras e/ou relacionadas à empresa), seja por segurança da informação (que defende segredos de negócio, informações concorrencialmente sensíveis, dados estratégicos ou informações e imagens de propriedade intelectual da empresa), seja para preservar conteúdos considerados como Direitos de Personalidade de terceiros (utilização da imagem, voz ou características relevantes de outras pessoas públicas).
Robôs vão nos substituir?
A Inteligência Artificial generativa tem preocupado e gerado reflexões e debates em quase todos os eventos de Marketing e Comunicação do mundo.
Uma recente pesquisa da Gartner aponta que, até 2025, a IA Generativa será responsável pela produção de 10% de todos os dados na internet e 20% de todos os dados de teste para aplicativos voltados para a pessoa consumidora. Além disso, até 2027, 30% das marcas deverão usar essas ferramentas para melhorar o desenvolvimento de seus produtos.
Mas, ainda que haja pontos de atenção, em relação à ética, privacidade, regulamentação, desinformação e manutenção de empregos, é fato que, quando utilizada de forma responsável, a IA pode trazer benefícios. A ABA elenca, por exemplo, maior eficiência de tempo e custos, escalabilidade, personalização e exploração da criatividade, para encantar o público-alvo. “Com ela, algoritmos são capazes de criar conteúdos completamente novos, como textos, áudios, vídeos, imagens, histórias, personagens e códigos de programação, aprendendo com informações pré-existentes e interagindo com os usuários”, diz o guia.
Para a publicidade, o marketing e as criações culturais e audiovisuais, trata-se de uma verdadeira revolução, que deve ressignificar as formas tradicionais de criar, por meio de abordagens imersivas, que abrem caminhos inexplorados de criatividade e estratégias.
Aqui na Ecomunica, acreditamos que o ser humano não será substituído, mas nosso papel e função mudarão de acordo com o avanço das IAs.
“No fim, o que ferramentas como o ChatGPT fazem é construir textos com base na previsibilidade das palavras que nós, seres humanos, usamos”, diz Ellen Bileski, diretora executiva e fundadora da Ecomunica. “Acredito que esses recursos poderão substituir profissionais de comunicação em textos mais básicos, mas não na criatividade, estratégia e relacionamento, ao mesmo tempo em que também poderá ser uma ferramenta relevante de pesquisa, facilitando o trabalho e liberando tempo de profissionais para atuar onde a máquina não consegue. Por isso, tenho a percepção de que estamos caminhando para um mercado em que soft skills e criatividade serão muito mais necessários do que competências puramente técnicas”, acredita.