Durante mais de 20 anos, a marca de lingerie Victoria ‘s Secret ditou o ideal de beleza e a imagem do que era uma “mulher sexy”. Tanto que o posto de “Angel” (como eram chamadas as garotas-propaganda da grife) passou a ser disputadíssimo entre as top models – e as escolhidas eram sempre magérrimas e, na maioria das vezes, brancas, como Gisele Bündchen, Alessandra Ambrósio, Izabel Goulart, Adriana Lima, entre outras brasileiras. Para se ter ideia do sucesso da empresa, os desfiles-espetáculo anuais, momento em que as “Angels” desfilavam com asas de anjo e peças íntimas cravejadas de joias, chegaram a ser assistidos por mais de 1 bilhão de pessoas em todo o mundo.
Porém, essa imagem um tanto pasteurizada do “sexy”, associada à mulher-objeto, o total desinteresse em fazer modelos para tamanhos grandes e a falta de diversidade e representatividade de corpos, raças e idades nas campanhas fizeram com que a Victoria’s Secret fosse ficando cada dia mais datada. E pior: a reputação da marca só piorava. Ainda mais depois das declarações gordofóbicas e transfóbicas que Ed Razek, então diretor de marketing da VS, deu à Vogue America, em 2018. Num momento de transformação da sociedade, do comportamento e dos desejos de consumo das mulheres, Ed Razek disse que ninguém tinha interesse em ver modelos plus size e que não incluiria modelos trans no casting, porque “o desfile é uma fantasia”.
Por trás do glamour, há ainda acusações de bullying e assédio de funcionários e modelos, como revela a nova série documental Victoria’s Secret: Angels and Demons, que retrata a ascensão e queda da megamarca e acaba de estrear no streaming via Hulu.
Um importante marco nessa queda foi em 2019, quando a cantora Rihanna lançou na TV o desfile de sua grife de lingerie, a Savage x Fenty. Ao apresentar mulheres de todos os tamanhos, idades, raças e etnias – incluindo duas grávidas – a marca virou símbolo de diversidade. A ideia de mulheres assumirem o comando de seus desejos, abraçando suas formas sem se preocupar com olhar masculino, fez com que a Savage virasse queridinha das celebridades e nas redes sociais. Isso virou a chave do mercado e foi a gota d’água para que a Victoria’s Secret recebesse ainda mais críticas e cancelasse, em 2019, o tal desfile anual.
Mas eis que, no ano passado, eles finalmente apresentaram ao público um rebranding, ou o que chamamos de reposicionamento de marca, com novos logo, identidade visual e embaixadoras, chamadas de VS Collective (entre elas, a modelo brasileira Valentina Sampaio, uma mulher trans). E, na semana passada, lançaram o primeiro clipe-campanha com o novo conceito.
Clipe da Victoria’s Secret Now apresenta o resultado do rebranding da marca
Só que o que poderia ser uma oportunidade de “limpar a barra” da companhia resultou em mais críticas e desconfiança.
Comentários no Twitter criticam o fato de a marca ter removido o glamour e os detalhes das peças, em nome da inclusão. E essas foram apenas algumas das críticas ao rebranding da grife, como falaremos a seguir.
Reposicionamento em tempos de ESG
Mudanças sempre são desafiadoras. Mudar de casa, de emprego, de cidade, de profissão… Imagine mudar uma empresa, remodelar uma marca, definir processos, redirecionar objetivos…
Pois o rebranding é um dos vetores de transformação de uma marca, que reestrutura quatro pilares: a marca, o negócio, a comunicação e a cultura da empresa. Passar por um processo de reposicionamento significa rever toda a base fundamental do negócio, desde a conceituação, até a estratégia e o direcionamento tático da companhia. A partir dessa revisão, é possível eliminar ruídos e incoerências, atualizar produtos e serviços, modernizar a linguagem e entender, por exemplo, qual é a melhor estratégia de canais para se comunicar com a audiência.
Esse é um trabalho que tanto pode ser feito para marcas que se perderam de seus propósitos, quanto para empresas que apenas querem acompanhar as mudanças da sociedade e se manter sempre atuais. Afinal, marcas são vivas e mutáveis.
Mas a exigência do mercado em relação ao cumprimento dos princípios ESG (sustentabilidade ambiental, social e de governança) tem feito nascer um curioso fenômeno: o das empresas que buscam o rebranding de fachada, só para conseguir investimentos, ou para ganhar a confiança do público, principalmente das novas gerações.
Um exemplo disso foi a rápida conversão na Europa dos fundos de investimento não ESG para fundos ESG. Tudo graças a um simples e superficial “reposicionamento de marca” (que às vezes consistia em apenas uma mudança de nome), mas sem uma verdadeira estratégia de investimento responsável. Um artigo do Financial Times expôs, inclusive, que um dos sinais de Greenwashing é o fato de que alguns dos maiores fundos ESG detêm ações das maiores empresas emissoras de carbono.
Um rebranding de fachada?
Esse fenômeno de “marketing maroto” talvez tenha se aplicado ao caso da Victoria’s Secrets, que de repente se viu diante da urgência para se adequar às demandas por Diversidade e Inclusão. Olhando um pouco além do clipe de apresentação da nova marca, descobrimos que seis dos sete novos membros do conselho são mulheres, mas o cargo máximo da empresa, de CEO, foi dado a um homem: Martin Waters. Isso desapontou o público, que questiona se algum dia as peças da VS foram mesmo feitas para agradar mulheres.
“Se você é uma mulher que já assistiu a um desfile da Victoria’s Secret, sabe que [aquele espetáculo] não foi feito para você”, escreveu a jornalista Lenore Fedow, editora do site National Jeweler, em seu artigo que analisava as gafes da marca. E o novo CEO reconheceu esse erro. “Quando o mundo estava mudando, fomos muito lentos para responder”, disse Waters numa entrevista recente ao The New York Times.“Precisávamos parar de ser sobre o que os homens querem e ser sobre o que as mulheres querem”, disse Waters entre outros mea culpa.
Outro ponto meio capenga nessa reformulação diz respeito às poucas opções ecológicas ou sustentáveis disponíveis na loja. Se a marca tivesse realmente ouvido as clientes, feito pesquisa com consumidoras da nova geração e se aprofundado nas tendências de mercado e demandas ESG, veria que sustentabilidade ambiental se tornou um valor muito forte. Inclusive, uma espiada na concorrência revelaria que muitas marcas de lingerie e até o fast fashion já apostam em coleções “eco-friendly”.
Além disso, ao assistir ao clipe de apresentação da Victoria’s Secrets Now, é notório que o apelo sexy das peças foi deixado de lado em nome do conforto, o que resultou em modelos lisos, básicos e um tanto sem graça, descaracterizando totalmente o DNA da marca. Afinal, apenas as magérrimas Angels podiam vestir peças trabalhadas?
O que meu cliente quer, afinal?
Aqui na Ecomunica, a gente guia clientes em processos de rebranding e, por isso, sabemos que é fundamental ouvir o que o público da marca realmente quer, além de estar sempre alerta para as transformações do comportamento, do consumo e das tendências de mercado. O público comprador quer se sentir representado e ouvido. Marcas que “ditam” como deve ser o estilo ou o comportamento estão um tanto ultrapassadas. As pessoas hoje buscam marcas que se alinhem com sua estética e valores.
Além disso, em tempos de redes sociais é muito difícil apagar gafes cometidas. Por isso, não adianta uma marca que errou querer passar uma borracha e achar que os(as) clientes vão simplesmente perdoar e esquecer. Isso não significa que uma marca com um passado questionável seja completamente imperdoável. Mas, antes, é preciso reconhecer os erros, pedir desculpas se necessário e se comprometer com a mudança num plano estruturado, profundo, factível e mensurável.
Porque um rebranding superficial é facilmente identificável e tem grandes chances de piorar a reputação que se pretendia salvar. No caso da VS, tomara que a marca, de fato, cumpra o que está prometendo, porque, até agora, as mulheres não compraram (literalmente) a nova ideia.